Sérgio Alves Moreira, um dos organizadores do assalto ao navio Santa Maria, faleceu em Caracas aos 77 anos. Um perfil/reportagem que aqui se recorda
Aetigo de Miguel Carvalho/in Visão
17:16 Quinta-feira, 26 de Fev de 2009
Nascido em Rio Meão, Santa Maria da Feira e fugido à ditadura em 1954, foi figura emblemática da oposição a Salazar no exterior. Homem das artes, membro activo do Instituto Português da Cultura na Venezuela, Sérgio dirigia uma livraria no centro de Caracas.
Em 2003, o jornalista da VISÃO, Miguel Carvalho, publicou no seu livro Dentada em Orelha de Cão - Histórias do Mundo com Gente Dentro (Campo das Letras) a história deste homem íntegro que a ditadura expulsou e a democracia esqueceu. Até hoje.Viver para contá-la
Os livros estão espalhados como gatos. E ronronam uma tranquila desordem de saberes, línguas e épocas. Mudam de poiso com frequência. Recebem carinhos, olhares curiosos, insinuam-se a quem insiste em folhear-lhes o corpo para descobrir a alma que encerram. Na livraria Divulgación, a cinco minutos da Universidade Central de Caracas, não há territórios sagrados para as palavras.
Literalmente. Testemunham-no as pilhas e caixotes de títulos de todos os tempos e modos. Capas velhas e novas, por entre resmas de facturas, guias de remessa, anotações, panfletos, cartazes de lutas antigas. A um canto, por detrás de uma secretária onde repousam uma máquina registadora de mercearia, papéis e volumes em desalinho, está sentado um homem de 73 anos, fazendo do fumo do tabaco o ar que respira. Por vezes, um arrastado toque de um telefone negro arranca-o da placidez. Alguém quer saber das novidades ou aconselhar-se sobre o melhor Quixote em castelhano. O velho vasculha, varre estantes, desfaz molhos de autores sem cumplicidades à vista desarmada. Vai certeiro à obra pedida naquela geografia de lombadas, onde só ele tem mão. E bússola.
A montra da livraria é quase o bilhete de identidade do proprietário. Nos escaparates, casa Ramonet com Saramago, Eduardo Galleano com Garcia Marquez. Nas paredes de vidro, forra o seu próprio jornal. Ali se expõe pelas palavras dos outros, pelos sublinhados, pelo corta e cola de colunas de periódicos, fotografias, manifestos anti-globalização e artigos contra traficantes de ilusões e vendilhões de pátrias. Para ver com olhos de ler.
Ali cabe também o humor, a caricatura de recorte político bem graduado. Mas como qualquer bom vinho, Sérgio Alves Moreira, também poeta das horas vagas com o pseudónimo venezuelano de Angel Passos, dispensa os rótulos. Apreciá-lo é bebê-lo. Até ao fundo da garrafa e das suas memórias.
Filho de pais autoritários, "mas justos", nasceu numa família grande, de 13 irmãos, em Rio Meão, Santa Maria da Feira, distrito de Aveiro. Não guarda especiais recordações da infância, mas a miséria que o rodeava, a fome, os racionamentos da farinha de pão, as lutas dos metalúrgicos e arbitrariedades dos patrões foram o miolo dos seus valores em plena adolescência. "Era o tempo em que o líder sindical de uma fábrica era o próprio dono da fábrica". Cedo teve acesso livre e ilimitado à biblioteca do Conde de São João de Ver e evidenciou logo nesse tempo conhecimentos e uma capacidade de expressão rara. Irreverente, picava o ponto nos momentos e locais menos próprios. Uma vez, na missa, levantou-se e protestou contra as passagens bíblicas lidas pelo Bispo de Aveiro. O prelado suou, a homília ressentiu-se e os pais nem sabiam onde meter-se. Não serviu de emenda. Aos 15 anos, decidido, escreveu uma carta a Oliveira Salazar. Desafiava-o, entre críticas, a pôr cobro às muitas injustiças que via. O ditador respondeu-lhe, num pequeno cartão: agradecia-lhe os reparos e prometia estar atento. Em vão. Os anos passaram e o pequeno mundo do jovem Sérgio não tinha aparentemente merecido os cuidados do homem que continuava a mandar no regime.
Muda de ares. Vai para Salamanca estudar, conclui a licenciatura em Filosofia. Ganha a dura batalha do curso, mas sobretudo a da consciência política, olhos nos olhos com outra das mais férreas ditaduras desse tempo. No regresso, traz fome de justiça e uma frase de um amigo cravada no peito: "Ainda há-de correr muito sangue por estas ruas". Franco não se esqueceria de traduzir o presságio em actos.
A mania de escrever, entretanto, tinha amadurecido. Bem como as leituras. As investidas epistolares davam lugar à poesia e ao ensaio. Não tardou que se abrissem as portas de alguns jornais para colaborações esporádicas. No Defesa de Espinho, que ainda hoje recebe em Caracas e ao qual o sogro esteve ligado, conheceu a sua futura mulher e fez-se repórter. O neo-realismo fez o resto. Para escrever sobre a vida miserável no bairro dos pescadores, viveu com eles e como eles. Durante alguns dias, andou descalço, dormiu onde o acolheram, partilhou o vinho, a comida, viu a tuberculose minar as fracas forças de gente sem defesas. "As barracas tinham uma única sala, com um fogão a lenha, e aí dormiam pais e filhos, a monte". Na cantina, "onde chovia barbaramente", comia-se uma sopa mal amanhada. No dia em que concluiu a reportagem, comprou um garrafão de vinho num tasco e esvaziando-o se despediu das famílias dos homens do mar. O texto nunca foi publicado.
Casa, entretanto. E tem uma filha. Mas não assenta, recusa beber da segurança engarrafada dos dias, anestesiar-se. Sem assumir qualquer filiação partidária, colabora em acções clandestinas, actividades subversivas. Faz amizades, cria cumplicidades para uma vida. E a polícia política mata-lhe o melhor amigo, militante do PCP. Carlos Ferreira Soares foi morto "porque era um grande humanista". Atraído a uma cilada da polícia política, o "médico dos pobres", como era conhecido, foi assassinado com 14 balas de uma pistola-metralhadora. "É o único santo laico que conheci", recorda Sérgio Moreira, com saudades de abraçar a japoneira plantada junto à sepultura onde o corpo do médico repousa, em Nogueira da Regedoura. "Quando ele foi assassinado houve uma revolta muito grande na terra. Quando vou a Portugal, deixo sempre um ramo de cravos à beira dele", conta Sérgio, de voz embargada e matando no lenço furtivas lágrimas. As raízes daquele tempo chegam a Caracas.
É uma época em que Sérgio não se cala, denuncia, mobiliza. E é intimado a comparecer perante o administrador de Santa Maria da Feira sob a ameaça de prisão. Ficam de olho nele, é seguido. "Ou ia-me embora ou passava à clandestinidade". O pai tinha bens, influências, desenrasca-lhe esconderijo em casa de um operário amigo. Em 1954, assume a condição de exilado político. E parte para Caracas apenas com uma velha mala e "meia dúzia de coisas". Deixa para trás a mulher e filha, que a ele só se juntariam doze anos depois. Até ao 25 de Abril, esteve proibido de regressar.
Naqueles anos, muitos portugueses emigraram para a Venezuela com o fito de uma vida melhor. Outros chegavam clandestinos, por vários motivos, sobretudo políticos. De barco, com Porto Cabello à vista, atiravam-se ao mar para evitar serem apanhados. Alguns desapareceram nas águas do Pacífico. Sérgio fez de tudo para não naufragar em terra firme. À época, a comida dos portugueses era uma banana e uma Pepsi, diziam, em jeito de troça, os venezuelanos. "Tempos muito difíceis".
Sérgio aconchegou-se em pátios internos de urbanizações, "onde várias famílias dormiam em divisões feitas com lençóis". Trabalhou numa cervejaria, foi empregado de escritório num semanário da comunidade portuguesa, perdeu a conta aos empregos. Saltou de pensão em pensão. Partilhou quarto com trabalhadores das obras e vendedores de jornais e pão ao domicílio. Na pensão Venâncio, onde "moravam" 38 emigrantes, "a diária incluía uma boa sopa, carne ou peixe e banana. Comia como não come ainda hoje a maioria dos venezuelanos. E como não comem muitos em Portugal".
Aos poucos, refaz a vida. A Candelária, na grande Caracas, é zona onde cultiva amizades e cozinha novas subversões. Ruy de Carvalho, psiquiatra e escritor, também exilado político, é um dos camaradas. Junta-se ao rol um alfaiate comunista, poetas, médicos, gente de várias origens e ofícios, "uns mais preparados do que outros". Respira-se política e cultura. Querem chamar a atenção e denunciar o regime salazarista. E tentam-no através de esquemas mirabolantes.
Manhã de 20 de Novembro de 1957, aeroporto de Maiquetia, Venezuela. Amália Rodrigues é recebida de forma apoteótica por quase dois mil portugueses. A diva do Fado comove-se, agradece as boas-vindas e segue para Caracas, onde fica alojada no hotel Tamanaco. Apesar de cansada da viagem, aquela a quem chamaram "A Voz de Portugal" dispõe-se gentilmente a conversar com os jornalistas durante quase três horas. Entre outras coisas, afirma sentir-se em casa e agradece o facto de, na Venezuela, se "gostar tanto dos portugueses como dos venezuelanos".
A sua estreia foi no Teatro Metropolitano e as actuações prolongaram-se por duas semanas, com bilhetes muito caros para a época. Amália era uma artista de elite e cobrava cinco mil bolívares diários. Sérgio Alves Moreira conheceu-a nessa altura. Tinha emprestado discos dela a muitos amigos e adorava-a. "Convivemos bastante durante uma semana, fui fundador do Centro Português e já estava muito ligado à comunidade de emigrantes", explica, recordando ter a fadista deixado "uma excelente impressão no país", sempre disponível, acessível e "com uma voz única".
Como seria de esperar, Amália foi bastante solicitada para eventos sociais. O convívio, a boa disposição da cantora, as visitas de cortesia que efectuou a alguns locais - entre os quais o jornal El Nacional onde tinha amigos - estreitaram os laços com figuras mais proeminentes da emigração portuguesa. Entre os quais, Sérgio. Ele, que não tinha perdido a rebeldia e o carácter contestatário, sentiu-se, a dada altura, com confiança para abordar Amália a propósito de assuntos mais melindrosos. "Tinha contactos com gente em Paris e perguntei-lhe se ela não se importava de levar uns papéis escondidos". A resposta da cantora, Sérgio jamais esquecerá. "Tenho medo, filho. A mim, se me tocam com uma unha, eu canto", disse-lhe a diva, escusando-se delicadamente a servir de correio clandestino. E assim ficaram, amigos à mesma. Uns dias depois, Amália regressou a Portugal. Esperavam-na para iniciar as filmagens de "Sangue Toureiro".
Outro episódio recambolesco foi o da visita a Caracas de Paulo Cunha, Ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar, para condecorar um PIDE pelos seus "relevantes" serviços à Pátria. Nesse dia, aquele grupo de resistentes à ditadura portuguesa organiza uma operação para sabotar a cerimónia. "Comprámos uns peidinhos mal cheirosos de Carnaval e juntamo-nos à multidão. A dada altura, já a assistência estava em debandada". Os jornais cheiraram a notícia e Sérgio foi à televisão explicar o porquê de tais acções. Estava oficializada a contestação. E lançada a semente de outras acções.
Uma delas, porém, atingiu proporções inesperadas. No auge do conflito que levaria à perda das colónias indianas de Goa, Damão e Diu, portugueses afectos à ditadura, a coberto da embaixada, organizaram em Caracas uma manifestação de apoio a Salazar. Sérgio reuniu as "tropas" e, de cartazes ao alto, lançam palavras de ordem contra o fascismo. "Um dos nossos até levou um cocktail-molotov". A desordem instala-se. Algumas mulheres atiram os sapatos contra os apoiantes do regime, a polícia é chamada a intervir. Sérgio e os outros correm a bom correr. Ele, que havia ganho provas de 500 metros em Salamanca, dá mais luta aos agentes. Mas é capturado. "Tinha comprado uma colt 38 a um alemão das SS que ia comer a uma das pensões onde estive". É preso numa cela com bêbados e ladrões. Mas por pouco tempo. "Já tínhamos a nossa rede de conhecimentos, incluindo o Ministro do Interior". Saiu. O diário El Nacional deu uma página aos acontecimentos. "Valeu a pena".
Enquanto se mantém empenhado no reforço da resistência, Sérgio é convidado para dar aulas de Filosofia, Francês e Latim num liceu em Barcelona, na zona oriental da Venezuela. "Ganhava para viver no melhor hotel de Caracas, se quisesse". Mas mais importantes são os contactos que estabelece com outros portugueses, mais esclarecidos e tendo também algo que contar sobre as agruras sofridas pelo regime. "Dizia-se que os madeirenses daquela zona eram salazaristas, mas não tive dificuldade em partilhar com eles as minhas opiniões sobre o regime e histórias das revoltas contra Salazar". Na lavandaria de um amigo, depois das aulas, faz-se a barrela da ditadura. A camaradagem enxuta as almas e permite sonhar com outras ambições. "Hoje, pode dizer-se que a comunidade portuguesa na Venezuela tem uma mentalidade salazarenta. Mas, naquela altura, foram muitos os emigrantes, sobretudo madeirenses donos de bares e botequins, que financiaram o assalto ao Santa Maria. Deram dinheiro, pão, água, comida".
A operação estava desenhada há algum tempo. Humberto Delgado, exilado no Brasil desde 1959, desloca-se a Caracas a convite de outros exilados e o assunto é abordado. A "guerra das embaixadas" havia dado dimensão internacional às lutas contra a ditadura, ganhando especial significado o refúgio de Henrique Galvão na embaixada da Argentina, sendo-lhe então concedido asilo. Será este capitão a esboçar a Operação Dulcinea, "um nome romântico que tinha muito a ver com o quixotismo do acto". Mesmo sem experiência militar, Sérgio é nomeado chefe de estágio, ou seja, cabe-lhe treinar os homens que tomarão conta do paquete. Os treinos são duros, incluem constantes subidas às montanhas para melhorar a orientação, acções no mar com lanchas e barcos. "Não podíamos sequer tocar em álcool, mas o Galvão bebia whisky tranquilamente".
Os dias passam, ajustam-se pormenores, o Directório Revolucionário Ibérico de Libertação ganha forma. Constituem-no exilados portugueses e espanhóis, estes comandados pelo ex-capitão Jorge Sottomayor, da Marinha de Guerra espanhola, "esse sim, o verdadeiro estratega do assalto". Galvão comanda a parte portuguesa, como representante do Movimento Nacional Independente fundado por Delgado no exílio. No Brasil, o "general sem medo" estava a par de tudo e assumia a tutela da operação. A Dulcinea preparou-se "em mês e meio". A utopia era construir uma grande Ibéria, federação de estados livres. Nas reuniões com Galvão, fica assente "não disparar um tiro, não podia haver uma gota de sangue". A quimera passava por levar o navio até à ilha de Fernando Pó, localizada na Guiné espanhola, para transportar munições, e desembarcar no Norte de Angola, instalando um governo provisório. "A ideia inicial era metade dos nossos entrarem no navio em La Guaira, legalmente, e a outra metade, clandestinos. A tomada do navio estava prevista para Miami".
Cedo as desconfianças e o mau ambiente se instalam entre os comandos. Galvão revela-se "muito autoritário, ambicioso, tinha a mania de que era infalível". Para agravar a situação, o capitão havia chegado a Caracas com uma argentina, de quem os homens comprometidos com a Dulcinea sempre desconfiaram. E não tarda a descobrir-se o pior: a acompanhante de Galvão tenta vender o segredo da operação à embaixada portuguesa. "Está a vender-nos?", perguntaram. Galvão enfureceu-se. É decidido, por razões de segurança, antecipar a acção. "Nessas condições, não vou", diz-lhe Sérgio. E acusa-o de ser "um Salazar fracassado".
A maioria, porém, decide embarcar.
Na madrugada de 22 de Janeiro de 1961, Galvão, liderando um comando de 23 homens, toma conta do Santa Maria, em pleno mar das Caraíbas. Mas há resistência a bordo, um morto por acidente, vários feridos. O navio, entretanto rebaptizado Santa Liberdade, tem de desviar-se da sua rota e libertar os feridos. A marinha norte-americana detecta o paquete português, mas Galvão dá conta da natureza oposicionista da operação e, após várias negociações, garante asilo político para as suas tropas no Brasil. A eleição do seu amigo Jânio Quadros para presidente abre as portas aos combatentes das ditaduras da Península Ibérica. "Foi um golpe publicitário. Nunca confiei no Galvão. Durante os preparativos da operação, ele teve uma reunião com Jânio Quadros quase em segredo e quando chegou ao Brasil já lá estava a sua bagagem". Posteriormente, contactos privilegiados com Agostinho Neto e outras figuras do MPLA, já depois da revolução dos cravos, permitiram-lhe levantar outras pontas do véu. "O Galvão não tinha firmado qualquer acordo com eles". O desenlace do Santa Maria é o fim de mais um capítulo na sua vida.
Desde 1966 que a livraria é o seu verdadeiro refúgio, o espaço natural de quem se sente cativo de um verso, de uma ideia, de uma história, de uma luta. Aparecem-lhe sobretudo professores, estudantes, muitas vezes apenas para conversar, carpir derrotas da humanidade, festejar pequenas vitórias num cantinho do mundo. "Já estive aqui de porta aberta, a beber vinho do Porto e a comer bolo-rei com amigos". Emigrantes, luso-descendentes, "vêm de vez em quando". Ouviram falar de um Eça, de um Camilo, Pessoa ou Saramago, este mais na moda. Ele tem. "Houve até um empresário português que decidiu oferecer livros do Saramago a clientes seus pelo Natal". Sinal dos tempos, sim, mas continuam a ser os venezuelanos quem os procura com mais avidez.
Aos poucos, Sérgio afastou-se dos espaços de partilha da comunidade portuguesa. Convive mal com tiques de novo-riquismo, manias de grandeza, deselegâncias para com a memória. "Fui fundador do Centro Português de Caracas. Visitávamos os compatriotas que estavam nas prisões, nos hospitais, doentes e abandonados. Hoje, aquilo é um clube para uma elite. Passaram a chamar-me comunista. Não é que me incomode, mas sempre gostei de pensar pela própria cabeça", resmunga. Preferiu sempre envolver-se em actividades marginais, organizar conferências com o Instituto Português de Cultura. Orgulha-se das visitas de Saramago, Lídia Jorge, Urbano Tavares Rodrigues e outros à Venezuela, em parte com a sua ajuda. À margem do Centro Português, esteve na organização das comemorações do 25 de Abril, em 1999. "Encheu-se o teatro Teresa Carreño, cantou-se a Grândola, mas estiveram lá mais venezuelanos do que portugueses". Ele e os outros promotores da iniciativa não se livraram do ferrete: são acusados por dirigentes do Centro Português de politizar a data. "Tem graça. Em idêntica ocasião, convidaram o Alberto João Jardim e uma quantidade de pobres diabos para as comemorações da revolução, mas aí já não era politização".
O passar dos anos roubou fulgor aos sonhos, tornou-o mais desconfiado do seu semelhante. Mas se os olhos dizem o que as palavras já não podem por cansaço, Sérgio não se deu por vencido na batalha diária pela dignidade do Homem, na defesa das suas aspirações e lutas, mesmo que isso tenha apenas o peso de uma migalha à mesa dos órfãos de várias utopias. Mas quase cinquenta anos a tratar por tu a realidade venezuelana deram a Sérgio Pereira um cepticismo à prova de amanhãs que cantam. Acumulou desilusões. A alma cansou-se dos entusiasmos de juventude, o corpo paga a factura do tempo e só os ossos do esqueleto de convicções o mantêm de pé. O observador mordaz que fez de um livro (As gaivotas não bebem Coca-Cola) um guia para a vida, continua, afinal, um resistente.
Esteve no Chile duas semanas antes de Pinochet tomar o poder com as mãos sujas de sangue. Guarda, dessa altura, um autógrafo de Neruda. Viu, amargurado, a Argentina transformar-se em pó, cinza e nada. E nos últimos tempos, só Lula, no Brasil, lhe tem dado uns fogachos de entusiasmo. "Mas os interesses económicos não o vão deixar fazer nada". Na Venezuela, já viu de tudo: democracias de envergonhar ditaduras, autoritarismos com a cara laroca das democracias, em todo os casos o mesmo propósito: vender um País aos interesses estrangeiros e enriquecer ainda mais uma burguesia intocável. Sérgio olha desconfiado para o que o governo apresenta como revolução bolivariana, algo que, para ele, não é nem carne nem peixe, mas sim uma salada ideológica. "Apesar de ter algumas bandeiras de esquerda como a lei de terras, os direitos dos povos indígenas, etc, isto é uma democracia parecida com a portuguesa". Hugo Chávez, o presidente, não lhe merece especial simpatia, "mas não é um ditador. É, sobretudo, um grande comunicador. E deu ao povo consciência dos seus direitos". Talvez por isso, falharam tentativas golpistas para o derrubar, "orquestradas e financiadas de fora". É o petróleo, sempre ele, no centro das atenções. "Os EUA são os amigos da onça da Venezuela. O que eles fizeram e promoveram aqui são coisas de lesa-pátria. No terreno, têm uma oposição que se julga eleita, trata os outros como chusma" e cujos líderes têm único objectivo: "Destruir a PDVSA, empresa de petróleos do Estado, e vendê-la por dez réis de mel coado a Bush". Sérgio tem medo, mas o medo não pode ter tudo. "Não me sinto seguro. Com essa gente da oposição, não me surpreende que me dêem um tiro. Um dia destes, entram por aqui e queimam-me tudo. Mas que posso fazer?". Vista da livraria, a tempestade não amainou. As gaivotas estão em terra, é certo. Mas não bebem coca-cola.
Sérgio, entretanto, envolveu-se em tertúlias culturais, universitárias traduziu autores de vários países, organizou volumes de poesia, agarrou Portugal com as duas mãos, abraçou-o nas letras, nas artes, na memória. "Fui exilado, agora sou um emigrante. Mas sinto-me um sem-pátria. Era o António Sérgio que dizia que Portugal não tem lugar para a maioria dos seus filhos, não era"?
O reencontro com a mulher e a filha, em 1966, o nascimento do segundo filho, e o 25 de Abril, foram os momentos de euforia do guerreiro que agora descansa. "Pensei em regressar de vez em 1975, mas já era tarde". Ainda assim, foi quase todos os anos a Portugal, matar saudades de Espinho, da japoneira de Nogueira da Regedoura, das sardinhas, da caldeirada de enguias. Admirou Vasco Gonçalves, simpatizou com a extrema-esquerda, "emprestei um disco com a voz do Allende à Isabel do Carmo e ao marido. Até hoje". Nos últimos anos, já não voltou. "Não posso, é muito caro. A mim nunca me ofereceram uma viagem gratuita a Portugal".
Ganha o suficiente para viver num apartamento modesto dos anos 70, onde não falta uma velha televisão a preto e branco e o pó dos anos. Passa os seus dias na companhia da mulher, Madília Dias, antiga bailarina e coreógrafa, e do neto, de 17 anos, de nome Harun, como o príncipe das Mil e Uma Noites. Harun, sinónimo de alvorada, romper do dia. Em casa, entre paredes com cartazes do cubano José Marti, desenhos de Botero e uma fotografia da criança de caracóis loiros que põe o cravo de Abril na espingarda do soldado, ele ainda guarda as armas de outras guerras. Poemas, canções, manifestos, palavras que são fisgas em tempo de mísseis, é certo. Ainda assim, com a força de quem não podendo vencer o inimigo, recusa juntar-se a ele.